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Alimentação é um sonho? Gabriela Martel, consultora pela ONU/FAO, propõe o debate.

  • Foto do escritor: revistaTATO
    revistaTATO
  • 12 de mar. de 2021
  • 4 min de leitura

"Quando recebi o convite para escrever esse pequeno artigo, confesso que pensei em muita coisa, mas quando quis começar a escrever faltaram-me palavras. Por quê?"


A autora convidada dessa edição é Gabriela Martel, Administradora Pública, Mestre em Segurança Alimentar e Desenvolvimento e Consultora na Organização das Nações Unidas (ONU) para Alimentação e Agricultura (FAO). Gabriela Martel conta sobre o panorama alimentar brasileiro e até onde a alimentação criou, fez e representa inestimáveis sonhos: os de uma nação.



Para muitos de nós, sonhos são metas pessoais, escolhas ou coisas que vislumbramos. Viajar pelo mundo, estudar em uma boa universidade, ir a um festival de música, comprar um carro bacana, construir uma casa na praia, ter uma carreira bem-sucedida... Todos são sonhos e sim, fazer parte do grupo de pessoas que escolhem o que é importante para a sua vida é um privilégio. Vejam bem, não estou criticando quem sonha. Eu inclusive sou alguém que gosta muito de sonhar e torço demais pelos sonhos das pessoas que amo. Mas sabem o que é triste, alarmante, e deve ser objeto de reflexão? Quando o “básico”, um direito humano, vira um sonho, um “luxo”.


Para muitas pessoas na América Latina, e no Brasil, colocar comida suficiente e saudável no prato todos os dias é um sonho. E pasmem, a quantidade de pessoas, em situação de insegurança alimentar, tende a aumentar cada vez mais. Uma alimentação saudável e adequada refere-se a quando a dieta preenche a quantidade mínima de calorias/proteínas básicas, mas com diversidade de alimentos. Para entender o que está acontecendo é importante olhar para os últimos anos.


Do início dos anos 2000 até 2014, a América Latina foi líder mundial na redução da fome, havendo uma queda no número de pessoas em situação de subalimentação e fome em todos os cantos do continente. Sonho? “Sonho que se sonha só é só sonho, mas se sonha junto, vira realidade”. Essa é uma conquista que daria um belo filme (ao menos eu acho que daria!), baseada em participação cidadã e articulação de políticas públicas. É muito bonita de ser contada, algo pelo qual sinceramente me orgulho como brasileira e penso que todo deveriam reconhecer, e que culminou com a saída do Brasil do Mapa da Fome da FAO em 2014, o que significa que 50 milhões de pessoas saíram da extrema pobreza em 10 anos.


O grande problema dessa história é que essas políticas precisam ser perenes, não importa quem esteja no governo. Devem ser políticas de ESTADO, não políticas de GOVERNO, pois infelizmente continuamos sendo um país muito desigual e com uma parcela considerável da população em situação de vulnerabilidade. Desde 2015 temos assistido à crise econômica alinhada ao desmonte gradual de todas as políticas públicas relacionadas à alimentação no Brasil, pois o assunto não continuou sendo tratado como prioridade na pauta dos governos. E como estamos agora?


Ao que tudo indica, o Brasil ruma a passos largos para o retorno ao Mapa da Fome, o que significa que mais de 5% da população brasileira (mais de 10 milhões de pessoas) ingere menos calorias do que o recomendável por dia. Além disso, estudos apontam que a América Latina é a região do planeta onde é mais caro alimentar-se bem e de maneira saudável, o que significa que muitas famílias não podem se dar “ao luxo” de uma alimentação rica em nutrientes. Na nossa região é muito mais caro comer bem, do que comer mal, mesmo a maioria dos países (inclusive o Brasil) sendo grandes produtores de alimentos. Isso faz com que não só a fome e a subnutrição estejam aumentando em um dos extremos da insegurança alimentar, mas que também o sobrepeso e a obesidade estejam em alta no outro extremo: 60,3% da população adulta do Brasil atualmente está acima do peso.


Com a pandemia da COVID-19, o problema tem se agravado. Ainda é cedo para medir o tamanho do “estrago”, mas a projeções são assustadoras. O fim do auxílio emergencial, o desaparecimento dos empregos e a diminuição da renda, a perda dos espaços de alimentação escolar... Todos esses fatores alargam o número de pessoas em condição de pobreza. Nessa linha de raciocínio, é notável o aumento da fome e da falta de uma alimentação com diversidade e qualidade.


No aniversário de um ano da pandemia, corremos o risco de perder, em 12 meses, avanços de mais de 10 anos na promoção de segurança alimentar. Isso precisa ser impedido. O Brasil precisa voltar a colocar a alimentação no centro do debate. Para muito além disso, precisamos repensar o processo de crescimento econômico, de forma a considerar objetivos de redução, tanto das desigualdades sociais como da pobreza, integrando todas as pessoas nesse processo. Se não o fizermos, a comida vai continuar a ser um sonho, cada vez menos realizável e mais distante, para muitas pessoas.


Tudo isso é triste e revoltante. De coração aberto, não entendo como alguém consegue ler e ouvir notícias relacionadas a esse assunto e continuar vivendo sua vida como se somente os seus próprios sonhos fossem importantes. Herbert de Souza, o Betinho, disse em 1993 algo que ressoa como uma profunda verdade para mim (e espero que para muitas outras pessoas): “É assustador perceber com que naturalidade fomos virando um país de miseráveis, com que tranquilidade fomos produzindo milhões de indigentes. Acabar com essa naturalidade, recuperar o sentido da indignação diante da degradação humana, reabsolutizar a pessoa como centro e eixo da vida e da ação política é essencial para transformar a luta contra a fome e a miséria num imenso processo de reconstrução do Brasil e de nossa própria dignidade. Por isso é que acabar com a fome não é só dar comida, e acabar com a miséria não é só gerar emprego, mas é reconstruir radicalmente toda sociedade”


Concluo essa reflexão reconhecendo o trabalho de muitas pessoas, que fazem o que conseguem para assegurar que a comida não seja um sonho para muitos. Valorizo o trabalho no micro e aprecio imensamente indivíduos, grupos e organizações que lutam por essa causa, mesmo sabendo que esse é um papel que deveria ser amplamente abraçado pelo Estado e que, infelizmente, não está sendo cumprido agora. Sonho que voltemos a ver pratos, geladeiras e barrigas suficientemente cheias e saudáveis em um horizonte próximo, nessa terra Pindorama.


- Gabriela Martel


@gabrielamartel .

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